A palavra setting pode ser traduzida literalmente como configuração ou cenário. Mas de que cenário falamos para a psicanálise?
O símbolo é o mais importante para a configuração. O consultório pode existir com seu mobiliário, trazer conforto à estada do paciente, sua decoração com elementos com referências tranquilizantes, mas o setting não se estabelecer. O portar-se do analista e suas técnicas poderiam compor o necessário? Necessariamente, não.
Então recorremos a Freud que nos textos Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise e Sobre o início do tratamento de 1912 e 1913, respectivamente, explica que o mais importante para a configuração é a posição simbólica do analista. A hierarquia tem primazia.
As recomendações contidas no primeiro texto, dentre algumas do mestre criador da psicanálise, estariam o não realizar anotações durante a sessão para que a atenção flutuante aconteça e tomar a precaução de ser analisado para que seus conteúdos não hajam em projeção sobre o analisando. No trabalho de 1913, aborda principalmente sobre a necessidade de uma investigação prévia para entender a demanda, o protocolo para pagamento e tempo de sessão/tratamento.
Não cabe abordar cada item acima, mas importa entender sobre a tentativa de auxiliar futuros analistas no princípio da profissão. Ao estabelecer regras, há um conforto sobre um trabalho em execução. Tanto para o analista que se coloca à disposição como para o analisado que percebe valor no contrato. Entretanto, o setting ainda é maior. Transcende ao físico, mas pode estar conectado a ele. Está mais associado ao entendimento de que podem fluir informações mais livremente e que aliviarão as neuroses. O entendimento vem do simbólico, como já disse anteriormente.
Ao falarmos de setting, abordamos o espaço construído entre analista e analisando. Os itens já listados podem ter contribuído para sua formação, mas a chave da questão deve estar no estabelecimento da transferência.
Freud nomeou transferência para o fenômeno em que sentimentos afetuosos ou hostis se dirigem entre os atores da sessão. Em princípio, esses sentimentos já estariam embutidos nas neuroses do analisando e são atribuídos à pessoa do analista. Pode-se dizer que a transferência é a máquina propulsora do tratamento. Ao se tratar desse assunto, dois autores podem ter sido disruptivos em seu tempo: Ferenczi e Winnicott.
Em Elasticidade da técnica psicanalítica (1928), Ferenczi comenta sobre a necessidade de um tato psicológico para comunicar algo ao analisando, quando silenciar ou mesmo reagir dependendo das reações do analisando. Reforça uma necessidade de empatia por parte do analista, a despeito da hierarquia.
De um recorte tacanho de sua obra, destaco algo que foi alvo de muita crítica, a análise mútua. Nela, analista e analisando invertiam seus papeis durante a sessão. A proposta era de o analisando buscar a posição dominante para revelar angústias do analista. Winnicott trabalhou em uma adaptação da transferência. Para quando as defesas do analisando se pronunciam inviabilizando a continuidade do tratamento o analista propõe o desenvolvimento do self.
Para Winnicott, esse congelamento da transferência seria normal por querer defender-se do que virá. Daí o amparo ou holding, como costuma-se chamar, é requerido. Esse acolhimento faz referência ao colo materno para acomodação das inseguranças.
Assim, o que se quis demonstrar até então, mesmo com pequenas referências das obras que deveriam ser estudadas com maior minúcia é que ao longo do tempo, entendem-se necessárias adaptações para dar continuidade ao processo analítico em indivíduos que, cada um com sua peculiaridade de história, demanda.
O setting analítico assume seu caráter virtual. Quando ao tratar de virtual, chego ao tema recorrente para o momento. Desde alguns anos, quando as chamadas de vídeo surgiram na internet, esse recurso já vinha sendo utilizado por colegas quando um laço transferencial estava estabelecido e o analisando estaria mudando para local que impossibilitaria presença em consultório.
Com a evolução dos meios de comunicação, a acomodação dos custos dessa infraestrutura no orçamento das pessoas e dispositivos móveis na internet, um cenário desafiador é posto.
A universalização da comunicação confere possibilidade de chegar a muitos mais necessitados. O mercado da psicoterapia aumenta. E pode-se dizer que não apenas pelo seu alcance, mas também por custos que de forma compartilhada também diminuem. Para o analista, a manutenção de seu consultório e a dinâmica dos agendamentos deve ditar o justo para sua remuneração. Para o analisando, além do custo da sessão, tem envolvido seu transporte e tempo de deslocamento.
Enquanto que para a terapia on-line os custos estão associados à conectividade que já deve existir nas residências de ambas as partes. Uma possibilidade desafiadora já no início pode ser do estabelecimento de valor para a sessão pois o ambiente não é o mesmo e a percepção de um trabalho menos nobre pode inconscientemente afetar a relação.
Recorrendo novamente ao texto Sobre o início do tratamento: “O tratamento gratuito aumenta enormemente algumas das resistências do neurótico - em moças, por exemplo, a tentação inerente à sua relação transferencial, e, em moços, sua oposição à obrigação de se sentirem gratos, oposição oriunda de seu complexo paterno e que apresenta um dos mais perturbadores obstáculos à aceitação de auxílio médico. A ausência do efeito regulador oferecido pelo pagamento de honorários ao médico torna-se, ela própria, muito penosamente sentida; todo o relacionamento é afastado do mundo real e o paciente é privado de um forte motivo para esforçar-se por dar fim ao tratamento...”.
Pelo exposto, há que buscar as condições do entorno ou contexto e dar crédito ao ensinamento. Isso não impede o atendimento social, que deve ser avaliado caso a caso, mas traz o analista para uma atenção à desvalorização de seu trabalho.
Voltamos ao caso da terapia on-line e entende-se que para ambas as partes, tratar do pagamento é parte do protocolo e influenciará no setting analítico. Com relação ao ambiente. A história de cada indivíduo será importante neste momento. Para alguns, a felicidade de estar em sua casa, quarto ou escritório para a análise facilitarão a conexão. Fobias sociais ou dificuldades de deslocamento por quaisquer razões poderão ser confortadas pelo fato de estar em um ambiente conhecido. Por outro lado, se a casa não proporcionar privacidade para a sessão ou condições mínimas de conforto, cria-se uma situação que deve ser contornada. Trazendo de novo Ferenczi, o tato ao tratar as diversas questões fará diferença.
As adaptações neste setting podem ainda ir além. Estar frente a frente com o analista, será algo a considerar amedrontador ou facilitará rapport? Desabilitar o vídeo é uma facilidade ou um problema?
Falando sobre quebra de paradigmas, temos que referenciar Reich. Para ele a associação livre trazida de Freud tinha lugar relevante, mas não maior que o todo do indivíduo. A análise corporal assume grau maior e as couraças advindas dos processos de recalque passavam por inspeção visual. Talvez aqui tenhamos perda de técnica com o posicionamento à distância, embora o olhar clínico do analista possa perceber bastante no enquadre facial ou mesmo no portar-se diante do dispositivo.
Daí, se perdemos o corpo, partimos para a linguística. Quem melhor para perceber o quanto do inconsciente está presente em cada palavra do que Lacan? Dele, “O inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Definindo conceitos como Real, Simbólico e Imaginário, propõe uma forma diferente de interpretar a psique. A apuração desses vem principalmente do discurso do analisando. A fala e sua associação livre são dissecadas pela história das palavras, as expressões idiomáticas e a construção do discurso.
É realidade que a terapia on-line se estabeleceu. Nosso modo de vida e tecnologia avançaram para obrigar a existência deste atendimento. Pela definição de setting analítico, não devemos encarar que exista alteração, já que o simbólico é o que conta. Mas a forma de estabelecer a transferência dentro deste setting requer uma habilidade talvez distinta da existente em consultório. Estamos falando de adaptações, elasticidade da técnica ou de transformação para um mundo integrativo?
O que diria Freud no mundo contemporâneo tendo ele sido grande revisor das suas próprias obras e apostando na comunicação por cartas com seus supervisionados quando a presença era inviável? Arrisco dizer que ele aprovaria a mudança. Sobre o profissional: daltonpsicanalise.com
Referências FREUD, S. Sobre o início do tratamento (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I) (1913) Rio de Janeiro: Imago. AFFONSO, C e outros. Sujeitos da Psicanálise. São Paulo: Escuta, 2018. BARROS, G. O setting analítico na clínica cotidiana. Pernambuco, 2013. REGO, R. A clínica pulsional de Wilhelm Reich: uma tentativa de atualização. São Paulo: USP, 2003